9 de dez. de 2014

É mesmo necessária toda essa argumentação?

A beneficiária legal de seguro DPVAT que teve a sua gestação interrompida em razão de acidente de trânsito tem direito ao recebimento da indenização prevista no art. 3º, I, da Lei 6.194/1974, devida no caso de morte. O art. 2º do CC, ao afirmar que a “personalidade civil da pessoa começa com o nascimento”, logicamente abraça uma premissa insofismável: a de que “personalidade civil” e “pessoa” não caminham umbilicalmente juntas. Isso porque, pela construção legal, é apenas em um dado momento da existência da pessoa que se tem por iniciada sua personalidade jurídica, qual seja, o nascimento. Conclui-se, dessa maneira, que, antes disso, embora não se possa falar em personalidade jurídica – segundo o rigor da literalidade do preceito legal –, é possível, sim, falar-se em pessoa. Caso contrário, não se vislumbraria qualquer sentido lógico na fórmula “a personalidade civil da pessoa começa”, se ambas – pessoa e personalidade civil – tivessem como começo o mesmo acontecimento. Com efeito, quando a lei pretendeu estabelecer a “existência da pessoa”, o fez expressamente. É o caso do art. 6º do CC, o qual afirma que a “existência da pessoa natural termina com a morte”, e do art. 45, caput, da mesma lei, segundo o qual “Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro”. Essa circunstância torna eloquente o silêncio da lei quanto à “existência da pessoa natural”. Se, por um lado, não há uma afirmação expressa sobre quando ela se inicia, por outro lado, não se pode considerá-la iniciada tão somente com o nascimento com vida. Ademais, do direito penal é que a condição de pessoa viva do nascituro – embora não nascida – é afirmada sem a menor cerimônia. É que o crime de aborto (arts. 124 a 127 do CP) sempre esteve alocado no título referente a “crimes contra a pessoa” e especificamente no capítulo “dos crimes contra a vida”. Assim, o ordenamento jurídico como um todo (e não apenas o CC) alinhou-se mais à teoria concepcionista – para a qual a personalidade jurídica se inicia com a concepção, muito embora alguns direitos só possam ser plenamente exercitáveis com o nascimento, haja vista que o nascituro é pessoa e, portanto, sujeito de direitos – para a construção da situação jurídica do nascituro, conclusão enfaticamente sufragada pela majoritária doutrina contemporânea. Além disso, apesar de existir concepção mais restritiva sobre os direitos do nascituro, amparada pelas teorias natalista e da personalidade condicional, atualmente há de se reconhecer a titularidade de direitos da personalidade ao nascituro, dos quais o direito à vida é o mais importante, uma vez que, garantir ao nascituro expectativas de direitos, ou mesmo direitos condicionados ao nascimento, só faz sentido se lhe for garantido também o direito de nascer, o direito à vida, que é direito pressuposto a todos os demais. Portanto, o aborto causado pelo acidente de trânsito subsume-se ao comando normativo do art. 3º da Lei 6.194/1974, haja vista que outra coisa não ocorreu, senão a morte do nascituro, ou o perecimento de uma vida intrauterina. REsp 1.415.727-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/9/2014.

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