3 de mai. de 2008

Fracionamento de hipoteca e o princípio da relatividade dos efeitos dos contratos

[...] III - A interpretação dos arts. 1.488 e 2.035 do CC⁄02.
A questão ora em exame diz respeito à aplicação das disposições do Código Civil de 2002 (especificamente, o artigo 1.488 desse diploma legal) às relações jurídicas formadas antes de sua vigência. Ou seja, trata-se de definir o alcance do artigo 2.035 do Código que, estabelecendo uma regra de transição entre a lei antiga e a lei nova, dispõe: Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar os preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos. Há, na norma supra transcrita, duas regras distintas, a saber: (a) a fixação da nova lei como diploma regulador dos efeitos de quaisquer contratos, firmados anteriormente à vigência do novo código (caput); e, (b) a não prevalência de uma convenção, na hipótese de ela entrar em confronto com os princípios de ordem pública introduzidos pela nova lei (parágrafo único). Ou seja: a hipótese "a" destina-se a regular todos os contratos anteriores, incidindo unicamente sobre seus efeitos, que são mantidos; a hipótese "b", por sua vez, destina-se a fulminar apenas alguns contratos (contrários à ordem pública), eliminando, portanto, de maneira completa a sua eficácia. No caso concreto, a norma cuja aplicação se pleiteia é o art. 1.488 desse diploma, que dispõe: Art. 1.488. Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito. (...) Essa norma claramente não visa à desconstituição completa de um negócio jurídico, sob o argumento de lesão à ordem pública. Assim, a questão não se situa no âmbito do parágrafo único do art. 2.035 do CC⁄02. Essa norma instituiu um direito potestativo à divisão do gravame hipotecário, direito esse que pode ser exercido pela parte interessada e a que não corresponde prestação alguma da outra parte. Vale dizer: uma vez preenchidos os requisitos da lei (imóvel que vier a ser loteado, ou em que se constituir condomínio edilício), o direito pode ser exercício pelo interessado, e à contra-parte competirá meramente se sujeitar a esse exercício. Disso decorre que a Lei não interfere no contrato de hipoteca. Este continua válido, entre as partes signatárias. O que é criado pela Lei é uma válvula de escape para os adquirentes das unidades do loteamento ou do condomínio edilício, em face de quem os efeitos da hipoteca não se produzem. Trata-se, portanto, de um obstáculo exterior, imposto por lei, ao contrato. Aplicam-se, por exceção, à hipoteca (que um direito real) os princípios que regem os contratos consensuais, que produzem efeitos exclusivamente entre as partes signatárias. A inoponibilidade de um contrato aos terceiros que dele não participam é uma hipótese comumente associada, pela doutrina que se debruçou sobre o estudo dos negócios jurídicos sob o ângulo de sua existência, validade e eficácia, a uma limitação da eficácia do instrumento (confira-se, por todos, LUIZ ROLDÃO DE FREITAS FOMES, "O ato jurídico nos planos da existência, validade e eficácia" in Revista Forense, vol. 327, págs. 81 a 90, esp. pág. 87). Estamos, portanto, claramente no âmbito do caput do artigo 2.035 do Código Civil. Tratando-se de uma questão relacionada à eficácia dos negócios jurídicos, bastaria o confronto entre o disposto nos arts. 1.488 e 2.035 do Novo Código para se concluir pela possibilidade da divisão do gravame hipotecário, porque os efeitos do contrato são expressamente regulados pela Lei Nova. Todavia, é importante notar que essa conclusão não decorre unicamente da interpretação literal da lei. Ela se coaduna com todos os princípios que informam o Código Civil de 2002 e demonstra que seus dispositivos não estão estabelecidos de forma aleatória. Há, não apenas uma harmonia internamente no sistema, mas também uma perfeita adequação entre essa harmonia interna e o contexto histórico e social brasileiro. O art. 1.488 do CC⁄02 consubstancia um dos exemplos de materialização do princípio da função social dos contratos, que foi introduzido pelo novo código. Com efeito, a idéia que está por traz dessa disposição é a de proteger terceiros que, de boa fé, adquirem imóveis cuja construção - ou loteamento - fora anteriormente financiada por instituição financeira mediante garantia hipotecária. Inúmeros são os casos em que esses terceiros, apesar de terem, rigorosamente, pago todas as prestações para a aquisição de imóvel - pagamentos esses, muitas vezes, feitos às custas de enorme esforço financeiro - são surpreendidos pela impossibilidade de transmissão da propriedade do bem em função da inadimplência da construtora perante o agente financeiro. Ora, a disposição introduzida no art. 1.488 do CC⁄02 veio amparar a boa fé desses adquirentes criando uma exceção à regra da oponibilidade erga omnes da hipoteca (art. 1.419, do CC⁄02). Essa exceção se justifica exatamente por ser, no plano fático, excepcional a própria hipótese regulada pela norma. É já cediça a compreensão, tanto pela doutrina, como pela jurisprudência, de que a única maneira de se otimizar a realização do princípio da igualdade é mediante o reconhecimento de que, em algumas situações, os sujeitos de uma relação jurídica não se encontram em posição similar. Nesses casos, em que as circunstâncias de fato provocam um desequilíbrio, tratar esses sujeitos de maneira objetivamente igual não basta para a plena realização do princípio da isonomia. É necessário reequilibrar os pólos da relação, estabelecendo regras excepcionais que tutelem a parte mais frágil. Promove-se, com isso - sempre nos termos estritos da lei - a igualdade substancial entre as partes, em detrimento da mera igualdade formal - que, em última análise, é apenas uma roupagem diferente para o arbítrio. A aceitação dessa necessidade, em vez de implicar uma subversão da ordem jurídica estabelecida desde a Revolução Francesa, com a exaltação dos princípios do pacta sunt servanda e da propriedade privada, na verdade nada mais é que a complementação do movimento nela iniciado. Com efeito, conforme demonstra ARRUDA ALVIM no excelente apanhado histórico que fez por ocasião de palestra proferida pouco antes do início da vigência do novo código (publicada na Revista Forense, vol. 371, págs. 51 a 72, sob o título "A função social dos contratos no novo Código Civil"), a introdução do cânone da igualdade cega, por parte dos revolucionários franceses, foi essencial para corrigir a enorme distorção que o tratamento diferenciado dispensado à nobreza na França do final do século XVI representava. A partir da defesa do princípio da igualdade, fundado inicialmente no respeito cego à autoridade dos contratos e à propriedade privada, possibilitou-se a tomada de poder pela classe burguesa e o desenvolvimento de todo o sistema capitalista moderno, com notórios reflexos no direito privado e no direito público. A evolução da sociedade, todavia, conduziu-nos, notadamente após às duas grandes guerras, ao aprimoramento desses princípios. Conforme também relembra ARRUDA ALVIM, o individualismo que está na base dos ideais revolucionários deu lugar ao conteúdo social do direito. Tal evolução se fez sentir, paulatinamente, em diversos ramos do direito. Para citar apenas seus principais reflexos dessa evolução, inicialmente, as garantias trabalhistas vieram corrigir o desequilíbrio de poderes entre empresários e trabalhadores; posteriormente, a idéia de função social da propriedade foi reconhecida no plano constitucional; mais recentemente, os desequilíbrios das relações de consumo foram mitigados com a criação do Código de Defesa do Consumidor; e, finalmente, a partir da vigência do Novo Código Civil, também a função social dos contratos passa a ser expressamente alçada ao patamar de norma cogente. Trata-se, portanto, de um movimento claro e sistemático na direção da correção das distorções sociais, de uma tentativa de reduzir as desigualdades e propiciar ao juiz mecanismos para que possa, da melhor maneira possível, buscar a realização da justiça. Naturalmente, como toda a criação humana, o sistema é passível de falhas. A própria discussão acerca da mitigação das garantias trabalhistas está a demonstrar que, com a evolução e a aplicação do direito, todos os princípios se lapidam, se adaptam, são levados ao seus extremos e, demonstradas suas incoerências, incitam os aplicadores do direito a os repensarem, num movimento contínuo. Assim também ocorrerá com o princípio da função social dos contratos. Para que essa evolução se possa verificar, todavia, é necessário que esse princípio seja, reiteradamente, submetido ao duro teste da realidade. Somente a prática demonstrará quais os limites em que o magistrado transitará em sua aplicação. Por isso é importante, em cada caso, relembrar o que levou o legislador a introduzir essa inovação em nosso sistema jurídico e, especificamente para casa caso concreto, verificar se há harmonia no sistema, se há uma situação de fragilidade de uma das partes e se, dado tudo isso, a aplicação do princípio se justifica. Ora, quando fazemos isso em relação ao caso sub judice, fica claro que a única solução possível é a aplicação imediata do art. 1.488 do Novo Código Civil. Nos autos, está fartamente comprovada a existência de inúmeras ações, propostas em face da recorrente por terceiros que, tendo pago todas as prestações do financiamento dos imóveis que adquiriram, pretendem ver reconhecido seu direito à transmissão do bem por escritura pública. Trata-se de uma questão que apresenta um reflexo social considerável e que traz, tanto à recorrente como a esses terceiros, um prejuízo considerável. A fragmentação da hipoteca, por outro lado, não implicará prejuízo à instituição financeira, uma vez que, conforme muito bem notado pela magistrada de primeiro grau na decisão que concedeu a tutela antecipada (posteriormente revogada pelo Tribunal de Justiça) : "no caso em tela, a identificação do valor devido relativamente a cada unidade hipotecada se orientou pela planilha contendo o saldo devedor, fornecida recentemente pelo próprio réu, e o valor atualizado da avaliação procedida por ocasião da feitura da hipoteca, observados os critérios de correção nela previstos. Do quadro apurado, infere-se que os interesses do demandado⁄credor ficam preservados e bem assim a garantia no cumprimento da obrigação, não se vislumbrando na concessão da medida qualquer irreversibilidade do direito, até porque eventual diferença em seu favor fica resolvida de acordo com o disposto no §3º do mesmo preceito legal já invocado, isto é, art. 1.488 do Código Substantivo" (fls. 22) Trata-se nitidamente de um caso em que o reconhecimento do suposto direito de uma parte implicará um desnecessário agravamento da situação de todos os demais pólos da relação jurídica. E de uma hipótese em que a mitigação desse aparente direito equilibra perfeitamente o sistema. O princípio da função social dos contratos, portanto, clama aplicação no caso concreto. O fracionamento da hipoteca é providência de rigor. No mérito, portanto, merece reconhecimento o direito da recorrente à tutela antecipada pleiteada. [...]

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