4 de jun. de 2007

Ponderação equivocada de princípios: o que não se deve fazer ! ! !

3ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL
GABINETE DO DR. ARI FERREIRA DE QUEIROZ
2º Juiz de Direito
Protocolo nº: 200701280918
Data: 11/04/2007
Requerente: NAZARETH MARIA DOS SANTOS
Advogada: Fernanda Machado Hardy de Menezes
Requeridos: ESTADO DE GOIÁS E SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE
Natureza: Ação Cominatória
SENTENÇA
NAZARETH MARIA DOS SANTOS ajuizou a presente ação cominatória em face do ESTADO DE GOIÁS e da SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE dizendo ser portadora de doença denominada “mieloma múltiplo – CID 10 C 900”, a qual vinha combatendo com o medicamento “talidomida”, mas teve que suspendê-lo, por ser diabética, devendo usar em seu lugar o “bortizomide”, cujo custo médio é de R$ 3.817,00 por ampola, totalizando R$ 122.144,00 a quantia de que necessita.
Segundo a requerente, em razão do progresso da doença, além de estar impossibilitada de realizar seus afazeres, está sujeita à doenças oportunistas, causadas pelo comprometimento de seu sistema imunológico.
Acrescenta que não tem condições de adquirir o medicamento adequado e, por isso, pleiteou junto à Secretaria de Estado da Saúde, mas seu pedido não foi atendido sob o argumento de que este medicamento não consta das relações nacional ou estadual de medicamentos essenciais, pelo que requereu a antecipação dos efeitos da tutela determinando aos requeridos que lhe fornecessem, de imediato, 32 ampolas do medicamento “bortizomide”.
Concedidos os benefícios da assistência judiciária e negado o pedido antecipatório, o Estado de Goiás foi citado e contestou dizendo que o fornecimento de medicamentos à população é direito de 2ª geração – direitos sociais –, de modo que para implementá-lo deve haver “dinheiro em caixa” e “prévia autorização legal, consubstanciada nas leis orçamentárias”.
Alega que em razão do princípio da reserva do possível, o Estado fica obrigado a escolher áreas de atuação, optando por fornecer certos medicamentos em detrimento de outros, ressaltando que na Tabela de Medicamentos Excepcionais SAI/SUS, atualizada pela Portaria n.º 2.577/06, não consta o medicamento solicitado pela autora, pelo que não tem como fornecê-lo sem “provocar um desarranjo orçamentário, bem como grave lesão à economia e saúde públicas”.
Requereu a improcedência o pedido.
A autora, por sua vez, voltou a se manifestar nos autos dizendo que após a propositura da ação sua doença se agravou ainda mais, tornando imprescindível o uso do medicamento. Disse ainda que a alegação do requerido, de que o medicamento não consta da Tabela de Medicamentos Excepcionais, “não é verdadeira, haja vista que o medicamento Velcade foi liberado pela Anvisa no dia 07/04/2007 e já está disponível no mercado.”
Acrescenta que o requerido emitiu “Nota de Empenho” no valor de R$ 5.250.000,00, em favor da empresa HOSPFAR INDÚSTRIA E COMÉRCIO DE PRODUTOS HOSPITALARES para compra de medicamentos diversos, dentre os quais encontra-se o Velcade e, com base nestes argumentos, requereu seja determinado, em caráter de urgência, o fornecimento do medicamento.
RELATADOS. DECIDO.
Trata-se de ação cominatória ajuizada em face do Estado de Goiás, na qual a requerente, portadora de doença grave (câncer), requereu o fornecimento de 32 ampolas do medicamento bortizomide - Velcade, cada uma no valor de R$ 3.817,00, totalizando R$ 122.144,00, dizendo que não conseguiu atendimento na esfera administrativa “sob o argumento de que o referido medicamento não faz parte da relação nacional de medicamentos e nem da relação Estadual de Medicamentos Essenciais”, mas é indispensável para o seu tratamento e não tem condições de adquiri-lo com recursos próprios.
Em sua contestação, o Estado alegou basicamente que o medicamento não consta da Tabela SAI/SUS, instituída pela Portaria n.º 2.577/2006, sem o que não está obrigado a fornecer, além do que, trata-se de direito fundamental de 2ª geração, cuja efetivação depende de meios possíveis, especialmente reservas financeiras.
A matéria versada nestes autos é eminentemente de direito, dispensada a produção de provas, além do que a contestação foi direta, simplesmente repelindo a pretensão da autora, razão porque passo desde logo ao julgamento do mérito.
Confrontando posições de autor e réu, tem-se a afirmativa de que o medicamento não foi fornecido por não constar da relação nacional de medicamentos e nem da relação estadual, por um lado, e, por outro, além disso, que não há disponibilidade de caixa.
Esta questão acerca de fornecimento de medicamentos tem ocupado enormes espaços do Poder Judiciário em todos os níveis, havendo exagerado número de decisões judiciais reconhecendo o direito dos requerentes sob o fundamento de ser a saúde direito fundamental e, como tal, protegido pela máxima eficácia própria das normas desta natureza.
Pode ter havido abuso, no entanto, caracterizando verdadeira banalização dos direitos fundamentais, especialmente ao não analisar a real necessidade econômica de quem pleiteia, obrigando o Poder Público a fornecer medicamentos para pessoas que poderiam auto-suprir sem grandes dificuldades, em detrimento de outros realmente necessitados.
Participei, como substituto do eminente Des. Alfredo Abinagem, de julgamento no Tribunal de Justiça, do mandado de segurança n.º 13.685-5/101, quando o Tribunal concedeu segurança para determinar o fornecimento de várias caixas do medicamento HUMIRA, cada uma no valor de R$ 5.429,82, oportunidade em que o relator Des. Zacarias Neves Coelho, assim fez constar do seu voto:
Sem embargo disso, considerando o auto custo do medicamento humira, prescrito aos substituídos, inquestionável que a concessão do mandamus, na forma pleiteada, abalaria de forma vultosa o Erário Estadual. Ora, não se pode olvidar que a atividade financeira do Estado é pré-estabelecida, via orçamento público, razão porque seria incoerente exigir-se do Ente Estatal cumprimento de ordem incompatível com a realidade vivenciada.
Com este entendimento, o eminente desembargador concedeu a segurança pleiteada, mas limitou a quantidade de medicamentos por pacientes e, neste ponto, foi vencido por seus pares, inclusive por mim, tendo a maioria considerado que os pacientes eram pobres e justificaram a plena necessidade de todo o quantitativo.
Melhor analisando esse caso concreto em momento posterior, por ocasião de desenvolvimento de tese de doutorado com o título “Eficácia das Normas Constitucionais Definidoras de Direitos e Garantias Fundamentais (Interpretação Realista do Art. 5º, § 1º, da Constituição Federal de 1988)”, critiquei, na página 441 (trabalho não publicado), a posição do Tribunal e, implicitamente, a minha própria, porquanto fiz parte do voto vencedor.
A crítica residiu no fato de ter reconhecido a obrigatoriedade de fornecer os medicamentos mesmo sem considerar eventual impossibilidade de caixa, e assim me expressei:
Com efeito, ao limitar a quantidade de medicamentos por paciente, o Tribunal acabou por negar a máxima eficácia antes afirmada, deixando implícito que não basta ter direito para poder exigi-lo, sendo essencial que demonstre a possibilidade de ser atendido.
Como para satisfazer o direito de poucos seria necessário sacrificar o de muitos, porque o Estado não tinha dinheiro suficiente para satisfazer a todas as necessidades, optou-se por atender o pedido em parte, de modo que a decisão foi, no mínimo, curiosa, pois ou se tem ou não tem direito líquido e certo a ser amparado por mandado de segurança.
Esta crítica foi o epílogo de um capítulo conclusivo da mencionada tese, em que, analisando o problema da eficácia das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, em razão especial do comando constante do art. 5º, § 1º, da Constituição Federal, denominei “conclusão sobre os direitos sociais” e assim a expressei, depois de consignar correntes pró e contra a denominada “auto-aplicabilidade” (pág. 438):
Essa orientação não pode ser aceita, porém. Com efeito, os direitos sociais, entre os quais se incluem os direitos do trabalhador, são mais que problemas jurídicos, residindo mesmo na economia e – reafirme-se – em políticas públicas que possibilitem a criação de empregos e meios de proteção de ambas as partes dessa relação laboral[1].
Danilo Zolo afirma enfaticamente ser impossível invocar os direitos sociais em razão de sua natureza econômica e jurídica e até propõe que, ao invés de se denominarem "direitos sociais", fossem "serviços sociais"[2]:
Se trata, por tanto, de una incompatibilidad entre los códigos funcionales de dos subsistemas sociales primarios: el del derecho y el de la economía. Por ello, mi duda sobre la naturaleza jurídica de los "derechos sociales" – una duda clásica, de Emst Forsthoff a Piero Calamandrei –, no se refiere a una genérica ausencia o insuficiencia de las garantías de los derechos sociales, sino a una imposibilidad funcional de prestarlos, más allá de un umbral notablemente rígido, en el contexto de una economía de mercado.
Nem se pode alegar que a dependência de lei regulamentadora ofende a Constituição, porque é justamente ela que assim dispõe, de modo que essas normas representam exceção à regra da plena eficácia, porquanto não existem incompatibilidades, nem inconstitucionalidades, entre normas constitucionais originárias.
Igualmente, não ofende a Constituição a negação do gozo de algum direito fundamental, mesmo que seja direito social, quando não houver disponibilidade de caixa ou, tampouco, de recursos técnicos ou científicos ainda não desenvolvidos. Aliás, quanto à disponibilidade financeira, por vezes o Estado até tem como superar, mas não sem grande sacrifício, de modo que, para atender ao direito de um ou de poucos, tem que sacrificar o da maioria ou de todos.
Por último, apresentei como conclusão final do trabalho o entendimento de que os direitos fundamentais prestacionais, o exercício pode depender mais do que de simples regulamentação, submetendo-se à existência de recursos financeiros ou orçamentários (pág. 461):
48. Quanto aos direitos fundamentais prestacionais, nem sempre é possível atribuir máxima eficácia porque, muitas vezes nem simples legislação regulamentar é suficiente, sendo comum situações em que, mais que lei, são necessários recursos financeiros ou orçamentários indisponíveis, ou meios técnicos ou científicos inalcançáveis por fatores diversos, inclusive soberanias internacionais.
É o que consta destes autos; a requerente comprova necessidade de um medicamento de auto custo, somando mais de R$ 122.000,00, enquanto o Estado alega não ter disponibilidade financeira para atendê-la e nem ter incluído este medicamento na relação daqueles que se obriga a fornecer.
O Estado amparou sua defesa na Portaria n.º 2.577/2006, do Ministério da Saúde, onde não consta o medicamento solicitado pela autora, e realmente, analisando-a, nela não há qualquer referência a nenhuma das denominações mencionadas na petição inicial.
No julgamento do pedido de suspensão de segurança n.º 3145, formulado pelo Estado de Alagoas, o Supremo Tribunal Federal concedeu liminar para excluir a responsabilidade do Estado quanto ao fornecimento de medicamentos não constantes da Portaria do Ministério da Saúde.
Esse é o entendimento que deve prevalecer, especialmente porque o medicamento pretendido pela autora só recentemente foi aprovado pela Anvisa, o que demonstra que antes dele, outros de custo sensivelmente menores existiam para combater a mesma doença.
Condenar o Estado a fornecer para uma única paciente, um único tipo de medicamento, ao custo total de mais de R$ 122.000,00, implica sacrificar uma grande parcela da população realmente carente, que necessita da medicamentos de custo muito inferiores, mas que mesmo assim não conseguem auto-suprir.
Em face do exposto, hei por bem julgar improcedente o pedido e condenar a requerente ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios no valor de R$ 1.000,00, mas isentando-a do recolhimento por ser beneficiária da assistência judiciária.
P.R.I.
Goiânia, 31 de maio de 2007.
ARI FERREIRA DE QUEIROZ
Juiz de direito

[1]BOBBIO, Norberto. El tiempo de los derechos (trad. esp. ROIG, Assis). p.82. Madrid: Sistema, 1991. "El derecho al trabajo no basta con fundamentarlo, ni con proclamarlo. Pero tampoco basta protegerlo. El problema de su ejercicio no es un problema filosófico ni moral. Pero tampoco es un problema jurídico. Es un problema cuya solución depende de un determinado desarrollo de la sociedad y, como tal, desafía incluso a la constitución más avanzada y pone en crisis incluso al más perfecto mecanismo de garantía jurídica".
[2]ZOLO, Danilo. Libertad, propiedad e igualdad en la teoría de los “derechos fundamentales” (a propósito de un ensayo de Luigi Ferrajoli). In Los fundamentos de los derechos fundamentales (orgs. CABO, Antonio de, e PISARELLO, Gerardo). 2.ed., p.95. Madrid: Trotta, 2005.

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