8 de ago. de 2008

Vale a pena sentir a Justiça que está presente nesta decisão

TJMG
Número do processo: 1.0056.06.132269-1/001(1)
Relator: NEPOMUCENO SILVA

EMENTA: ADOÇÃO - ELEMENTOS E CIRCUNSTÂNCIAS DOS AUTOS - DIREITO FUNDAMENTAL - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - CANCELAMENTO DO ATO - POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - EM ABSTRATO, NO CASO CONCRETO - INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA/SOCIOLÓGICA - PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE - TEORIA DA CONCREÇÃO JURÍDICA - TÉCNICA DA PONDERAÇÃO - SITUAÇÃO FÁTICO-SOCIAL - CRIANÇA - PROTEÇÃO INTEGRAL, COM ABSOLUTA PRIORIDADE - SENTENÇA ANULADA - RECURSO PROVIDO. Tem-se o conflito das realidades fático-social e jurídica, ocasionado pela escolha indevida do instituto da adoção, ao invés de tutela. Não se olvida que a adoção é irrevogável, mas o caso sob exame revela-se singular e especialíssimo, cujas peculiaridades recomendam (ou melhor, exigem) sua análise sob a ótica dos direitos fundamentais, mediante interpretação teleológica (ou sociológica), com adstrição aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se azo, com ponderação, à concreção jurídica, máxime por envolver atributo da personalidade de criança, advinda de relacionamento "aparentemente" incestuoso, até porque o infante tem proteção integral e prioritária, com absoluta prioridade, assegurada por lei ou por outros meios. Inteligência dos arts. 5º da LICC; 3º e 4º, caput do ECA; e 226, caput e 227, caput da CF).

Vistos etc., acorda, em Turma, a 5ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, EM DAR PROVIMENTO.
Belo Horizonte, 06 de dezembro de 2007.
DES. NEPOMUCENO SILVA - Relator
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
O SR. DES. NEPOMUCENO SILVA:
VOTO
Presentes os requisitos de sua admissibilidade, conheço do recurso.
Trata-se de recurso contra sentença (f. 33-34), proferida pelo MM. Juiz de Direito da Vara de Família e Sucessões, da Comarca de Barbacena, nos autos de ação rotulada Cancelamento de Adoção ajuizada por P. C. S. F. (apelante) em desfavor de M. G. S. F. (apelada), a qual extinguiu o processo sem resolução de mérito, face à impossibilidade jurídica do pedido (CPC, art. 295, I e parágrafo único, III c/c art. 267, I).
Nas razões recursais (f. 37-42), erige-se o inconformismo da apelante, argumentando, em síntese: que considera Flávio - filho da apelada e pai de seu filho - como sendo seu primo, mas que "a realidade jurídica transformou-os em irmãos", gerando impedimento para uma união estável ou casamento; que busca o cancelamento da sua adoção para que possa contrair núpcias, pois juridicamente sua relação é considerada "espúria, incestuosa"; que o resgate e a manutenção de sua filiação biológica traduz a efetividade ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana; que a sua filha, "aos olhos da Lei, por ser fruto de uma relação ilegal, será inevitável que ela seja discriminada, sofra chacotas, seja apontada como filha de irmãos, fato que irá abalar de forma substancial sua estrutura psicológica e personalidade"; e que no registro de nascimento de sua filha os avós paternos e maternos são os mesmos.
Contra-razões, clamando o acolhimento da pretensão (f. 48-49).
Colheu-se o parecer da douta Procuradoria-Geral de Justiça.
Priscilla Alves da Silva (certidão, f. 6), filha de Marlene Alves da Silva, foi adotada, quando criança, por Antônio José Filho (falecido) e Maria das Graças Silva Filho - esta, prima de sua mãe biológica - passando a chamar-se Priscilla Cristina Silva Filho (certidão, f. 7).
O casal adotante já possuía dois filhos, sendo que a adotada (apelante) "veio a nutrir sentimento amoroso" por um deles (Flávio Silva Filho), advindo dessa relação a sua gravidez, que motivou o pedido de cancelamento de sua adoção, a fim de permitir a realização do casamento, já que os enamorados nunca tiveram sentimento fraternal.
No curso do processo (16/10/2006), nasceu Larissa Sthefany Silva Filho, filha de Flávio Silva Filho e de Priscilla Cristina Silva Filho (apelante), constando do seu assento de nascimento os mesmos avós paternos e maternos (certidão, f. 44), restando afrontado o seu direito de personalidade, relativo ao nome (identidade pessoal), porque o ser humano não tem somente direitos à aquisição de um nome "mas também direitos de conhecer a forma como foi gerado, a identidade dos seus progenitores e, principalmente, através do conhecimento de seu patrimônio genético, terá direito à defesa de sua identidade genética". (Sílvio Romero Beltrão, in Direitos da Personalidade, São Paulo: Atlas, 2005op. cit., p. 119). (grifo nosso)
Trata-se de realidade fática - singular, diferenciada e especialíssima - cujo exame exige cautela e ponderação, porquanto envolve valores ético-constitucionais, impendendo exarar que "as disposições legais não esgotam todo o conteúdo da tutela da personalidade humana, surgindo aspectos que não encontram proteção nas normas legais existentes", como ensina Sílvio Romero Beltrão (op. cit., p. 53).
A ilustre Promotoria de Justiça, preocupada com as graves conseqüências que poderão advir da relação tida como incestuosa, recomenda, verbis: "Embora tenhamos exaustivamente pesquisado doutrina e jurisprudência não fomos felizes em localizar nenhuma orientação para este caso singular. Seria de prudente arbítrio que instância superior apreciasse a matéria posta em exame para que sirva de bússola para novas prestações jurisdicionais" (f. 30).
Poder-se-ia, simplesmente, negar provimento ao recurso, ao singelo argumento de que "A adoção é irrevogável" (ECA, art. 48).
Porém, mesmo que se conclua pela improcedência do pedido na instância de origem, o jurisdicionado espera e faz jus a uma motivação razoável, que não traduza, apenas, a menção a um dispositivo legal. Interpretar a lei é buscar o seu real sentido e alcance, com adstrição ao seu caráter teleológico(ou sociológico), como se extrai do art. 5º da LICC, norma de sobredireito, verbis: "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".
Não pode o julgador, pois, olvidar que "A melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar a injustiças". (STF, Ciência Jurídica, 42:58).
Tem-se, de um lado, o texto letárgico e indiferente da lei, que estabelece a irrevogabilidade da adoção; de outro, prerrogativa fundamental, atinente à dignidade da pessoa humana, cuja peculiaridade e especificidade, do caso concreto, recomenda (ou melhor, exige) a análise sob inspiração hermenêutico-constitucional, com engenhosidade intelectual, social e jurídica, a fim de se alcançar o escopo magno da jurisdição: a pacificação social.
Acerca da interpretação teleológica (ou sociológica), com o costumeiro brilho, em anotação ao art. 5º da LICC, ensina Maria Helena Diniz:
A interpretação teleológica é também axiológica e conduz o intérprete-aplicador à configuração do sentido normativo em dado caso concreto, já que tem como critério o fim prático da norma de satisfazer as exigências sociais e a realização dos ideais de justiça vigentes na sociedade atual. [...] O art. 5º está a consagrar a eqüidade como elemento de adaptação e integração da norma ao caso concreto. A eqüidade apresenta-se como a capacidade que a norma tem de atenuar o seu rigor, adaptando-se ao caso sub judice. Nesta sua função, a eqüidade não pretende quebrar a norma, mas amoldá-la às circunstâncias sociovalorativas do fato concreto no instante de sua aplicação. (in Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, 2. ed., São Paulo: Saraiva, 1996, p. 158/159)
Não se trata, aqui, de revogação proposta pelo adotante decorrente, por exemplo, do nascimento posterior de filho; nem de tentativa de restabelecimento do poder familiar dos pais naturais. Tem-se caso outro - diferenciado e relevante - que envolve, inclusive, atributo atinente ao estado da pessoa. Refiro-me à criança recém-nascida (certidão, f. 44) que, de fato, é fruto do amor de seus pais (primos), mas, juridicamente, provinda de relação incestuosa, já que seus pais são irmãos adotivos.
Incesto é a "união sexual ilícita entre parentes consangüíneos, afins ou adotivos", sendo o infante tido como "torpe, incasto, incestuoso", como se infere do Dicionário Aurélio Eletrônico (v. 3.0).
Essa a pecha, mácula e nódoa, que estigmatizarão a criança por toda a sua vida, pois estará marcada a ferrete por circunstância a que não deu causa, simplesmente porque o Judiciário se apegou exacerbadamente à interpretação meramente gramatical do dispositivo legal, reconhecendo, por via tergiversa, a aplicabilidade da parêmia latina in claris cessat interpretatio.
A adoção - instituto escolhido para dar assistência à apelante, quando ainda criança - não era o ideal, porque "em se tratando de parentes, melhor será a aplicação da tutela, que também satisfaz plenamente a colocação do menor em lar substituto até que atinja a maioridade civil" (Paulo Lúcio Nogueira, in Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 54).
A desconfortável situação vivenciada pela apelante e seu companheiro-primo-irmão, que agora têm uma filha de tenra idade, advinda dessa união, demonstra o acerto dessa preleção doutrinária.
Não se trata de anulação do ato jurídico (adoção), porque não se apresenta inquinado por qualquer vício que a justifique; não se trata, também, propriamente, de revogação da doação, porque o pedido não é formulado pela adotante.
Trata-se de invalidação da adoção em decorrência de múltiplos fatores: preterição, àquela época, do instituto adequado (tutela); superveniência fático-social (relacionamento amoroso entre a adotada e seu primo-irmão adotivo); efetividade da dignidade da pessoa humana (criança advinda do relacionamento); prevalência da situação fática à jurídica (nunca houve entre os envolvidos sentimento fraternal); e união acolhida e reconhecida no meio sociofamiliar.
O caso sob exame reclama a releitura do texto legal, sob inspiração sociológica, pena de preterição do conteúdo pelo invólucro e de prevalência da literalidade do texto legal sobre a mens legis, porque
a finalidade da norma não é ser dura, mas justa; daí o dever do magistrado de aplicar a lei ao caso concreto, sem desvirtuar-lhe as feições, arredondando as suas arestas, sem, contudo, torcer-lhe a direção, adaptando a rigidez de seu mandamento às anfractuosidades naturais de cada espécie. [...] É, indubitavelmente, o art. 5º da Lei de Introdução que permite corrigir a inadequação da norma à realidade fático-social e aos valores positivados, harmonizando o abstrato e rígido da norma com a realidade concreta, mitigando seu rigor, corrigindo-lhe os desacertos, ajustando-a do melhor modo possível ao caso emergente.
[...]
O sentido normativo requer a captação dos fins para os quais se elaborou a norma, exigindo, para tanto, a concepção do direito como um sistema dinâmico, o apelo às regras da técnica lógica válidas para séries definidas de casos, e a presença de certos princípios que se aplicam para séries indefinidas de casos, como o de boa-fé, o da exigência de justiça, o do respeito aos direitos da personalidade, o da igualdade perante a lei etc.
[...]
Daí ser íntima a relação entre ideologia, ciência do direito e aplicação jurídica, pois o enfoque hermenêutico deverá ser feito sob a luz da teoria da concreção jurídica, caracterizada pela circunstância de estabelecer a correlação entre norma, fato e valor, visando a uma decisão judicial que, além das exigências legais, atenda aos fins sociais e axiológicos do direito. Por isso um sistema jurídico em dada situação concreta de decisão terá que proceder a uma simplificação, ou seja, neutralizar os valores através da ideologia.
Concluindo, assevera Maria Helena Diniz que
a função jurisdicional, quer seja ela de subsunção do fato à norma, quer seja de integração de lacuna normativa, ontológica ou axiológica, não é passiva, mas ativa, contendo uma dimensão, nitidamente criadora de norma individual, uma vez que os juízes despendem, se for necessário, os tesouros de engenhosidade para elaborar uma justificação aceitável de uma situação existente, não aplicando os textos legais ao pé da letra, atendo-se, intuitivamente, sempre às suas finalidades, com sensibilidade e prudência objetiva, condicionando e inspirando suas decisões às balizas contidas no sistema jurídico, sem ultrapassar, por um instante, os limites de sua jurisdição. (op. cit., p. 159/169/172). (grifo nosso)
É sob esse estímulo, preocupado com os direitos fundamentais da criança nascida desse relacionamento, os quais gozam de proteção integral, assegurada por lei ou por outros meios, com absoluta prioridade, que busco, mediante a técnica da ponderação, permitir a qualificação dessa convivência (criança e seus pais) como família, base da sociedade, com especial proteção do Estado (arts. 3º 4º, caput do ECA c/c arts. 226, caput e 227, caput da CF), medida que se impõe, também, sob a égide principiológica da proporcionalidade e da razoabilidade.
Tratando desse princípio, sob o título "O Novo Código Civil e a interpretação conforme a Constituição", preleciona Inocêncio Mártires Coelho (in O Novo Código Civil: estudos em homenagem ao Prof. Miguel Reale, São Paulo: LTr, 2003, p. 45-46), verbis:
... o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das idéias de justiça, eqüidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a de nível constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito, serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico.
No âmbito do Direito Constitucional, que o acolheu e reforçou, a ponto de impô-lo à obediência não apenas das autoridades administrativas, mas também de juízes e legisladores, esse princípio acabou se tornando consubstancial à própria idéia de Estado de Direito pela sua íntima ligação com os direitos fundamentais, que lhe dão suporte e, ao mesmo tempo, dele dependem para se realizar. Essa interdependência se manifesta especialmente nas colisões entre bens ou valores igualmente protegidos pela Constituição, conflitos que só se resolvem de modo justo ou equilibrado, fazendo-se apelo ao subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, o qual é indissociável da ponderação de bens e, ao lado da adequação e da necessidade, compõe a proporcionalidade em sentido amplo.
Assim resumidos, pode-se dizer, a título de conclusão pontual, que esses princípios revelam pouco ou quase nada do alcance, praticamente ilimitado, de que se revestem para enfrentar os desafios que, a todo instante, são lançados aos aplicadores da Constituição por uma realidade social em permanente transformação.
Daí a necessidade, de resto comum a todos os instrumentos hermenêuticos, de que sejam manejados à luz de casos concretos, naquele interminável balançar de olhos entre objeto e método, realidade e norma, para recíproco esclarecimento, aproximação e explicitação.
O posicionamento adotado não diz respeito, nessa seara recursal, ao mérito da decisão. Os argumentos dão lastro, apenas, à infirmação da "aparente" impossibilidade jurídica do pedido, permitindo que este, retornando os autos à sua origem, possa ser apreciado, com aperfeiçoamento da relação processual e a devida instrução probatória, mediante depoimentos pessoais e de testemunhas.
Frisa-se que o nascimento da criança, depois da propositura da ação, configura fato superveniente - jus superveniens - que deve ser sopesado pelo julgador, mesmo de ofício, nos termos do art. 462 do CPC, não se descurando que a sentença é
ato de vontade, mas não ato de imposição de vontade autoritária, pois se assenta num juízo lógico. Traduz-se a sentença num ato de justiça, da qual devem ser convencidas não somente as partes como também a opinião pública. Portanto aquelas e esta precisam conhecer dos motivos da decisão, sem os quais não terão elementos para se convencerem do seu acerto. Nesse sentido diz-se que a motivação da sentença redunda de exigência de ordem pública. (Moacyr Amaral Santos, in Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 13. ed., São Paulo: Saraiva, 1993, v. 3, p. 19).
A espécie não permite ao Tribunal julgar desde logo a lide (CPC, art. 515, § 3º), até porque o pólo passivo da demanda deverá ser integrado, também, pela mãe biológica da apelante, frisando-se que "O litisconsórcio, quando necessário, é condição de validade do processo e, nessa linha, pode ser formado a qualquer tempo, enquanto não concluída a fase de conhecimento" (STJ, 3ª T., AI 420.256/RJ-AgRg, Rel. Min. Ari Pargendier, j. 30/08/2002, dec. unân., DJU 18/11/2002, p. 214).
Ante tais expendimentos, reiterando vênia, dou provimento ao recurso para, anulando a sentença, reconhecer, abstratamente, a possibilidade jurídica do pedido, no caso concreto, determinando o retorno dos autos à sua origem, a fim de que o feito tenha o seu regular prosseguimento, com as recomendações alhures.

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